quinta-feira, 11 de abril de 2013

A EXPERIÊNCIA DO ABANDONO COMO LUGAR TEOLÓGICO (EM CONSTRUÇÃO)




André Gustavo Dias Lycurgo

 “Duo Sobre Desvios” é um coletivo artístico independente, formado pelos atores Cadu Cinelle e Fabricio Moser, tendo como produtora executiva Renata Souza. O “Duo” usa como ponto de partida materiais literários, musicais e visuais de: Cadu Cinelli, Fabricio Moser, Bartolomeu Campos de Queiros, Leonilson, Anton Tchekov; Bach, Ryan Green 28, Roberto Carlos, Björk, Caetano Veloso, Lhasa; Leonilson, Renata Souza, Mariane Martins, não se fechando nos mesmos, mas propondo uma interatividade com o público, que nesse processo também podem ser co-autores dessa obra em aberto.
Esse processo estético-investigativo, iniciou sua micro-temporada, na primeira semana de março, no Art Hostel Rio, situado no Catete, charmoso bairro carioca. Apresento e me aproprio dessa investigação teatral tendo como pretensão fazer uma breve interpretação teológica do conteúdo que a originou: a idéia do desvio como ato de abandono.
No início do espetáculo, fomos convidados a conhecer o espaço sagrado, que acolheu a ação cênica antes mesmo de nossa passagem. Matematicamente, milimetricamente a relação das personagens “C” (Cadu?) e “F” (Fabricio?), em movimentos repletos de repetição revelam para o público o que será questionado e investigado. Parece haver uma intencionalidade nessas repetições. Esse momento deixa-nos: cansados, devido ao tempo gasto; irritados, com o som da gota que cai sem parar; e apreensivos com o que virá. Imagens projetadas no palco revelam: o desgaste conjugal traduzido no espaço em ruína que outrora acolhera seres humanos, tão humanos quanto às personagens “C” e “F”; e a insatisfação tocante a questões universais da existência.
Num segundo momento, há um rompimento estético-artístico radical: ficção e realidade, palco e platéia são remasterizados. A beleza, a glória e o esplendor, “buscados pelo ator”, são desdenhados. Há uma dialética gastronômica proposta no espaço sagrado (dentro do palco), articulada ao espaço profano (fora do palco). Somos coagidos pelo prazer (vinho, cigarro, chocolate, cachaça, wisky), a interagir em suas vidas. Eu me abandono. Você me abandona. Nós nos abandonamos. Desenrola-se a investigação, os elementos que serão digeridos são postos nessa grande mesa. Qual é a melhor forma de celebrar o abandono? Qual é a imagem do abandono? Qual é a música do abandono? Você já foi abandonado? Você já abandonou alguém, algum projeto, algum lugar? Nesse momento você tem alguma coisa para abandonar? O que significa a palavra abandono?
Objetos de uso pessoal, familiar e encontrados na rua são integrados. O que seria marginalizado é assumido. O profano é convocado organicamente a integrar o espaço sagrado. Trabalha-se com a idéia de memória, há uma ressignificação de fatos familiares vividos, há uma exposição literal do artista (Cadu e Fabricio), ao narrar de onde vieram os objetos, como vieram e qual importância afetiva é atribuída aos mesmos. Lençóis, lenços, mochilas, tênis, revistas, documentos, bichinhos de pelúcia etc. É proposto que a platéia também abandone objetos para aprofundar a investigação. Celular, máquina fotográfica, pen drive, anotações, dinheiro, cabeça de boneca e batom afetivamente também entram em cena.
Num outro momento, coreografia e grafia de corpos nus num viés poético traduzem a realidade conjugal do duo: tensão, desejo pelo equilíbrio, cansaço e desencontro vão sendo expurgados. Esse humano abandonado em si mesmo passa por um êxodo, por uma experiência de deserto, segue o seu destino, sobe um alto cume e deseja se lançar num imenso abismo, questionando como seria a sua existência depois dessa queda. Nesse transito há um despojamento radical: tudo o que pesará no restante da caminhada é lançado nesse abismo. Imagens judaico-cristãs são utilizadas nessa reflexão: o filho pródigo, o Cristo crucificado, a experiência do povo eleito no deserto e seu êxodo são costuradas de forma crítica nessa busca por uma realidade nunca vivida.
Há uma cisão na relação afetiva das personagens, correlacionada à experiência vertiginosa da queda. São abandonados valores tidos como imutáveis, absolutos.  Na crueza da nudez explicita-se a aflição do ser aprisionado, associado ao desejo desenfreado do querer ter domínio sobre as formas, repleta de um hermetismo idolátrico descolado das ambigüidades e fragilidades do dia-a-dia. A atriz vocacionada (“C”) e o grande dramaturgo (“F”), encarnam esplendorosamente esse drama.
Com o passar do tempo novos horizontes são abertos. Tristeza e alegria revelam o reencontro. A atriz ao abandonar-se descobre a sua razão de viver, a sua vocação maior. A felicidade desse encontro com o seu ser artista exala realização, trazendo para o grande dramaturgo uma enorme insegurança. A fragilidade, a insatisfação do grande dramaturgo dá o tom pesado, amargo do artista, dando a impressão de que deteve grande parte de sua vida às formas impostas por alguma instituição, abstendo-se das pequenas coisas sem valor, que também compõem a vida.
Num mix de ficção e realidade, vejo que há uma espécie de desabafo existencial do duo, diante da realidade de ser artista, num país onde as oportunidades muitas vezes se dão de forma alternativa. O despojamento crítico, artístico é exposto: beleza, glória, esplendor; somada à paixão vocacional, revela a faceta do artista-cidadão que tem a pretensão de se apropriar de algo que é ao mesmo tempo constitutivo e o transcende, sendo co-criador, responsável pela sua vida, não se conformando com anti-valores estético-artísticos.
O que fica dessa experiência é a sensação de que não podemos ter o domínio absoluto das coisas, nem das pessoas. O ato de abandonar (-se), pode ter uma gama de interpretações, boas ou não. Relacionando a trajetória do duo, vejo que o desvio foi essencial para reafirmar identidade, para descobrir uma nova realidade e por em questionamento valores indissolúveis, abrindo-se para o desconhecido. A crise, a vertigem, a nudez, a solidão, o tempo amadurecido, a redescoberta da alegria, a paz encontrada traduzem a possibilidade humana de re-criação, como nos tempos da escola, onde o intervalo era um tempo essencial para a manutenção das demais atividades. O leite e mel dessa narrativa têm como “pátria”, a promessa do renovo da força criativa do artista que se alimenta da utopia laboriosa de se por na vida como artista-cidadão, insatisfeito consigo e com o meio no qual está inserido.

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