André Gustavo
Dias Lycurgo
“Duo Sobre Desvios” é um coletivo artístico
independente, formado pelos atores Cadu Cinelle e Fabricio Moser, tendo como
produtora executiva Renata Souza. O “Duo” usa como ponto de partida materiais literários, musicais e visuais de: Cadu Cinelli, Fabricio Moser,
Bartolomeu Campos de Queiros, Leonilson, Anton Tchekov; Bach, Ryan Green 28,
Roberto Carlos, Björk, Caetano Veloso, Lhasa; Leonilson,
Renata Souza, Mariane Martins, não se fechando nos mesmos, mas
propondo uma interatividade com o público, que nesse processo também podem ser
co-autores dessa obra em aberto.
Esse processo estético-investigativo, iniciou sua micro-temporada, na primeira
semana de março, no Art Hostel Rio, situado no Catete, charmoso bairro carioca. Apresento e me aproprio dessa
investigação teatral tendo como pretensão fazer
uma breve interpretação teológica do conteúdo que a originou: a idéia do desvio
como ato de abandono.
No
início do espetáculo, fomos convidados a conhecer o
espaço sagrado, que acolheu a ação cênica antes
mesmo de nossa passagem. Matematicamente, milimetricamente a relação das
personagens “C” (Cadu?) e “F” (Fabricio?), em movimentos repletos de repetição
revelam para o público o que será questionado e investigado. Parece haver uma
intencionalidade nessas repetições. Esse momento deixa-nos: cansados, devido ao tempo gasto; irritados, com o som da gota que cai sem
parar; e apreensivos com o que virá. Imagens
projetadas no palco revelam: o desgaste conjugal traduzido no espaço em ruína
que outrora acolhera seres humanos, tão humanos quanto às personagens “C” e
“F”; e a insatisfação tocante a questões universais da existência.
Num segundo momento, há
um rompimento estético-artístico radical: ficção e realidade, palco e platéia
são remasterizados. A beleza, a glória e o esplendor, “buscados pelo ator”, são
desdenhados. Há uma dialética gastronômica proposta no espaço sagrado (dentro
do palco), articulada ao espaço profano (fora do palco). Somos coagidos pelo
prazer (vinho, cigarro, chocolate, cachaça, wisky),
a interagir em suas vidas. Eu me abandono. Você me abandona. Nós nos
abandonamos. Desenrola-se a investigação, os elementos que serão digeridos são
postos nessa grande mesa. Qual é a melhor forma de celebrar o abandono? Qual é
a imagem do abandono? Qual é a música do abandono? Você já foi abandonado? Você
já abandonou alguém, algum projeto, algum lugar? Nesse momento você tem alguma
coisa para abandonar? O que significa a palavra abandono?
Objetos de uso pessoal,
familiar e encontrados na rua são integrados. O que seria marginalizado é
assumido. O profano é convocado organicamente a integrar o espaço sagrado.
Trabalha-se com a idéia de memória, há uma ressignificação de fatos familiares
vividos, há uma exposição literal do artista (Cadu e Fabricio), ao narrar de
onde vieram os objetos, como vieram e qual importância afetiva é atribuída aos
mesmos. Lençóis, lenços, mochilas, tênis, revistas, documentos, bichinhos de pelúcia
etc. É proposto que a platéia também abandone objetos para aprofundar a
investigação. Celular, máquina fotográfica, pen
drive, anotações, dinheiro, cabeça de boneca e batom afetivamente também
entram em cena.
Num outro momento,
coreografia e grafia de corpos nus num viés poético traduzem a realidade
conjugal do duo: tensão, desejo pelo equilíbrio, cansaço e desencontro vão sendo expurgados. Esse humano
abandonado em si mesmo passa por um êxodo, por uma experiência de deserto,
segue o seu destino, sobe um alto cume e deseja se lançar num imenso abismo,
questionando como seria a sua existência depois dessa queda. Nesse transito há
um despojamento radical: tudo o que pesará no
restante da caminhada é lançado nesse abismo. Imagens judaico-cristãs são
utilizadas nessa reflexão: o filho pródigo, o Cristo crucificado, a experiência
do povo eleito no deserto e seu êxodo são costuradas de forma crítica nessa
busca por uma realidade nunca vivida.
Há uma cisão na relação
afetiva das personagens, correlacionada à experiência vertiginosa da queda. São
abandonados valores tidos como imutáveis, absolutos. Na crueza da nudez explicita-se a aflição do
ser aprisionado, associado ao desejo desenfreado do querer ter domínio sobre as
formas, repleta de um hermetismo idolátrico descolado das ambigüidades e
fragilidades do dia-a-dia. A atriz vocacionada (“C”) e o grande dramaturgo (“F”),
encarnam esplendorosamente esse drama.
Com o passar do tempo
novos horizontes são abertos. Tristeza e alegria revelam o reencontro. A atriz
ao abandonar-se descobre a sua razão de viver, a sua vocação maior. A
felicidade desse encontro com o seu ser artista exala realização, trazendo para
o grande dramaturgo uma enorme insegurança. A fragilidade, a insatisfação do
grande dramaturgo dá o tom pesado, amargo do artista, dando a impressão de que
deteve grande parte de sua vida às formas impostas por alguma instituição, abstendo-se
das pequenas coisas sem valor, que também compõem a vida.
Num mix de ficção e realidade, vejo que há
uma espécie de desabafo existencial do duo, diante da realidade de ser artista,
num país onde as oportunidades muitas vezes se dão de forma alternativa. O
despojamento crítico, artístico é exposto:
beleza, glória, esplendor; somada à paixão vocacional, revela a faceta do
artista-cidadão que tem a pretensão de se apropriar de algo que é ao mesmo
tempo constitutivo e o transcende, sendo co-criador, responsável pela sua vida,
não se conformando com anti-valores estético-artísticos.
O que fica dessa
experiência é a sensação de que não podemos ter o domínio absoluto das coisas,
nem das pessoas. O ato de abandonar (-se), pode
ter uma gama de interpretações, boas ou não. Relacionando a trajetória do duo,
vejo que o desvio foi essencial para reafirmar identidade, para descobrir uma
nova realidade e por em questionamento valores indissolúveis, abrindo-se para o
desconhecido. A crise, a vertigem, a nudez, a solidão, o tempo amadurecido, a
redescoberta da alegria, a paz encontrada
traduzem a possibilidade humana de re-criação, como nos tempos da escola, onde
o intervalo era um tempo essencial para a manutenção das demais atividades. O
leite e mel dessa narrativa têm como “pátria”, a promessa do renovo da força
criativa do artista que se alimenta da utopia laboriosa de se por na vida como
artista-cidadão, insatisfeito consigo e com o meio no qual está inserido.
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