terça-feira, 22 de maio de 2012

Papo de Boteco [AGDL]



"Masturbação, Café e Teologia" faz uma pequena homenagem a todos os apaixonados que se debruçam, se encontram, se reencontram, se descobrem, que se identificam com a potencialidade da “mesa”, que em sua multiforme pode significar algo novo, principalmente quando acoplada às relações, aos momentos descontraídos, descompromissados, onde a alegria, o desabafo, os pecados inconfessáveis (confessados), a entrega ao outro possui um valor que transcende a sua forma utilitária. Nesse sentido seguiremos os passos deixados pelo maior frequentador de mesas da história, apelidado por alguns de “beberrão e comilão”. Foi mal visto, difamado por andar, por se envolver com pessoas pouco usuais para sua cultura, para sua época.
Relacionado à vivência de Jesus, o Jesus de Nazaré (o mesmo descrito na Bíblia dos cristãos católicos, ortodoxos, protestantes e em alguns livros apócrifos), tocante a sua forma de valorizar a vida humana, não posso deixar de explicitar a mesa como símbolo de uma parte de um todo que está relacionada diretamente ao tecido social, a sociedade. Da “mesa” (lugar teológico) podemos extrair pérolas que ainda hoje podem trazer significação para a nossa existência. Nesse sentido destaco a importância da “comensalidade” como uma palavra que traduzirá, sintetizará a proposta desse pequeno texto, onde a mesa irá ornamentar o nosso “papo-furado”, o nosso bom e velho "papo de boteco”.
A palavra comensalidade na sua radicalidade significa comer e beber juntos, é estar em comunhão num espírito, numa motivação celebrativa diante dos desafios da vida, onde a mesa é uma das fontes de renovação tida como um “dever celebrativo” que se expande, se dilata para a sociedade. Essa realidade é sonhada, é construída, é compreendida gradativamente na história, só que de forma inacabada, em aberto (escatológica), num vir-a-ser constante comportando ambiguidades e mazelas humanas.
Cito Boff*:
“Hoje mais da metade da humanidade não tem acesso ao comer e ao beber; Vivemos numa humanidade flagelada, com 800 milhões de famintos, quase dois bilhões de subnutridos, com bilhões de pessoas sem água potável e dois bilhões de sem água tratada; no mesmo dia do incidente da queda das torres gêmeas em Nova York, morreram exatamente 16.400 crianças abaixo de cinco anos, morreram de fome e desnutrição, no dia seguinte e outro dias sucessivamente durante todo o ano, 12 milhões de crianças foram vitimadas pela fome”.
A realidade da mesa foi sonhada, praticada por Jesus numa experiência “antropofágica”, onde o “faminto de Nazaré” comeu, se nutriu do que havia de mais particular nas casas, nos vilarejos, nas ruas, nos botecos por onde passou, desde a sua casa até os bairros, cidades mais longínquas,  isto é, Jesus comeu, bebeu se fartou da cultura na qual estava inserido e a transformou. Ele criou, fez algo novo a partir da mesma.
Em sua vida Tradição e Vanguarda estavam em sua panela, em seu prato. Da mesma forma (comer e criar a partir de), vivida por seus discípulos e ainda hoje podendo provocar, impulsionar algo novo, transformador na humanidade. O que Jesus de Nazaré vivenciou foi um “Já e um ainda Não Gastronômico” de uma realidade simples, caseira, possível. Jesus radicaliza essa experiência se encarnando, se nutrindo, não apenas de uma parte do ser humano, mas do ser humano integral. E todos nós hoje podemos nos alimentar, deglutir, digerir, nos nutrir de sua Paixão, Morte e Ressurreição.
Mesa (local simbólico) onde se realiza a comensalidade pode ser compreendida numa chave de leitura que faz referências profundas na orientação, na construção da vida humana. Nesse objeto as perspectivas: estética, existencial, simbólica, espiritual se encontram num grande e demorado abraço. Na realidade esse ato pontencializador é um cerimonial informal dos comentários dos fatos “banais” cotidianos, das opiniões sem censura sobre os acontecimentos. É um local prazeroso onde a vida é rememorada. Esse grande abraço, esse belíssimo “ritual antropofágico” pode incorporar também os órfãos, as viúvas, os estrangeiros, isto é, “os excluídos, os pobres do Senhor” fazendo referência a outras épocas (AT e NT), e ainda hoje podendo ser reconfigurados em outras “categorias”.
Os alimentos e as bebidas (“elementos”) que embelezam a mesa transcendem a materialidade (sem deixar de valorizá-las), são símbolos de nosso encontro e comunhão com a vida, com o Deus da Vida. O gesto fundamental dessa antropofagia é o serviço voluntário, solidário (diaconia), é o partilhar do alimento e da bebida (valorizando todas as etapas, até a sua chegada à mesa, fruto do suor, da produção humana), com outro. É ético e solidário que todos se alimentem, se sirvam, zelando para que o alimento chegue suficientemente a todos (“diaconia gastronômica”).
Nessa “dinâmica gastronômica” as ambiguidades, as sombras, as tensões, os conflitos podem se instaurar. O ser humano ao longo da história vem fazendo substituições, trocas em relação à valoração da mesa. Há uma banalização, deturpação, há uma falta de bom senso, de senso comunitário, nesse sentido a mesa (local simbólico) perde a sua dimensão sacramental. Daí podemos visualizar uma realidade (“Anti-mesa”) em muitas mesas de bar, de faculdades, de hospitais, de escolas, de igrejas, de instituições, de negociações, de jogos, de discussões e de debates, de câmbio, de concentração de interesses, entre outras.
É preciso resgatar a importância da comensalidade e da inter-relação livre e desinteressada. Vemos tal importância em muitas mesas judaico-cristãs onde os patriarcas, os profetas, os apóstolos, os evangelistas, os poetas, as pessoas simples, "anônimas" registraram alguns diários de bordo (Sagrada Escritura), trazendo para o leitor a relação íntima do povo, da comunidade com o Deus de Jesus de Nazaré. Como cristãos e não cristãos não podemos, não devemos nos abster de um grande banquete de abrangência cósmica, onde a mesa está relacionada ao Reino de Deus, onde o próprio Jesus de Nazaré convidou, provocou homens, mulheres, crianças, idosos, jovens, adolescentes (todos) para uma “experiência gastronômica” significativa, fundamental.
         Encerro esse papo de boteco com a citação de Morin, contida no livro de Leonardo Boff*, onde explicita o fato de ter havido uma transição no que diz respeito à comensalidade:
“A especificidade do ser humano surgiu de forma misteriosa e de difícil reconstituição histórica. Entretanto, etnobiólogos e arqueólogos nos acenam para um fato singular. Quando nossos antepassados antropoides saíam para recoletar frutos, sementes, caças e peixes não comiam individualmente o que conseguiam reunir. Tomavam os alimentos e os levavam ao grupo, e aí praticavam a comensalidade: distribuíam os alimentos entre si e os comiam grupal e comunitariamente. Portanto, a comensalidade, que supõe a solidariedade e a cooperação de uns para com os outros, permitiu o primeiro salto da animalidade em direção à humanidade. Foi só um primeiríssimo passo, mas decisivo porque coube a ele inaugurar a característica básica da espécie humana, diferente das outras espécies complexas (entre os chimpanzés e nós há apenas 1,6% de diferença genética): a comensalidade. Essa pequena diferença faz toda uma diferença. A comensalidade que ontem nos fez humanos continua tal tarefa ainda hoje”.

*Utilizo como fonte de inspiração, o livro “Virtudes para um outro mundo possível – Volume III: Comer & Beber Juntos & Viver em Paz, do Leonardo Boff, pp. 9-24.

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